A pacata cidade onde nasceu o shoyu, o molho de soja onipresente na culinária japonesa
Subindo com cuidado a escadaria íngreme da construção, sigo Tsunenori Kano até o andar da sala de fermentação da Kadocho — a fábrica de shoyu da sua família, estabelecida há 180 anos.
O espaço é escuro e misteriosamente silencioso, exceto pelo ranger dos meus passos sobre as velhas tábuas de madeira dispostas entre os recipientes de molho de soja. O shoyu agora estava em repouso, era final do inverno, mas ainda assim preenchia o ar com um aroma apetitoso.
À minha volta, uma espessa crosta de fungos cobria o teto, caindo das vigas e crescendo pelas paredes.
“São as bactérias e leveduras, têm a idade da construção”, afirma Kano, que faz parte da sétima geração da fábrica. Segundo ele, “são elas que fornecem o sabor autêntico”.
Eu estava em Yuasa, um pacato porto japonês localizado em uma baía na costa oeste da península de Kishu, na província de Wakayama, em uma jornada para aprender sobre as antigas origens do “santo graal” da culinária japonesa: o molho de soja, ou shoyu.
Origem remonta ao século 13
O molho de soja é, sem dúvida, o condimento mais importante da cozinha japonesa. Seu sabor rico, profundo e equilibrado, ao mesmo tempo doce e salgado (conhecido como “umami”), fornece a quase todos os alimentos a satisfação de um sabor delicioso. Seus usos variam desde uma pincelada no sushi até quantidades maiores no macarrão ensopado e em frituras, além do sabor característico de pratos brilhantes como o teriyaki.
Em 2017, a Agência Japonesa para Assuntos Culturais declarou Yuasa como Patrimônio do Japão, por ser o local de nascimento do molho de soja japonês. Acredita-se que o shoyu tenha sido fabricado ali pela primeira vez no final do século 13.
O popular condimento surgiu pouco depois que um monge budista japonês, Shinchi Kakushin, voltou de uma viagem à China e se tornou abade do Templo de Kokoku-ji, perto de Yuasa. Ele trouxe da viagem uma receita de missô kinzanji, um tipo único e encorpado de missô (pasta de soja fermentada, normalmente usada para sopas e molhos), feito de grãos de soja inteiros, diversos outros grãos (como cevada e arroz) e outros ingredientes de origem vegetal.
A população de Yuasa logo percebeu que, à medida que os ingredientes do missô kinzanji eram pressionados com pedras pesadas, o líquido que se acumulava em pequenas quantidades nas bacias de fermentação era delicioso. Este subproduto recebeu o nome de tamari (palavra genérica em japonês que significa “acumular”) e tornou-se a base do molho de soja que conhecemos hoje.
Ao longo dos anos, de ponto de parada da rota de peregrinação Kumano Kodo — que leva aos templos e santuários famosos do monte Koya, nas redondezas —, Yuasa transformou-se no centro de fabricação de shoyu mais importante do Japão.
No seu apogeu, a minúscula cidade de apenas cerca de mil casas estava repleta de fábricas de molho de soja — ao todo, mais de 90, ou quase uma para cada 10 residências.
Atualmente, o distrito histórico da cidade é protegido pela legislação japonesa. É uma extensa área que engloba 323 casas e outras hongawara-buki (construções tradicionais) reconhecidas por seu imenso valor cultural.
Muitas destas construções ainda mantêm suas tradicionais janelas de treliça e telhas curvas, características arquitetônicas que simbolizavam a prosperidade de seus donos para quem passasse pela rua. Elas incluem cinco lojas de molho de soja e seis fabricantes de missô kinzanji que ainda estão em atividade.
A visita a estas construções traz consigo a notável história do progresso interligado do missô kinzanji e do molho de soja.
Relíquia culinária
O sabor distinto do shoyu de Yuasa reflete suas antigas origens a partir do missô kinzanji. Diferentemente dos outros tipos de missô, que são pastas usadas como condimento, o missô kinzanji é um prato nutritivo e de sabor requintado.
É uma relíquia culinária da dinastia Song, considerada um dos grandes desenvolvimentos do mundo gastronômico, em uma época em que novos e requintados sabores eram criados a partir de ingredientes comuns. E continuou sendo uma iguaria popular da região ao longo dos séculos, consumido na forma de lanche, acompanhamento ou até como uma refeição leve, adicionado a uma tigela de arroz ou misturado no chagayu (mingau feito de arroz, água e chá).
O missô kinzanji foi parte de todas as minhas refeições durante minha estada em Yuasa.
Mas o tamari, subproduto do missô kinzanji, era tão saboroso que os habitantes locais queriam encontrar uma forma de produzi-lo em maiores quantidades. Foi quando adaptaram com sucesso o método de produção do missô kinzanji para criar o molho de soja, que é uma forma de tamari menos espessa, mas com sabor similar.
Fundada em 1841, a Kadocho, de Tsunenori Kano, é uma das fábricas de shoyu mais antigas de Yuasa ainda em atividade. O molho de soja produzido por eles é o mais próximo do original que pode ser encontrado hoje em dia no Japão.
Enquanto descíamos da sala de fermentação, Kano me mostrou toda a fábrica e explicou como o processo de fabricação de shoyu foi adaptado a partir da produção de missô kinzanji.
Apontando para antigas ferramentas de madeira e máquinas de ferro, ele contou que, para fabricar o molho de soja, são utilizados apenas dois tipos de grãos (soja cozida e trigo torrado) — estes são amassados para melhor extrair seu sabor e umami (enquanto, no caso do missô kinzanji, são deixados inteiros).
Os grãos são então misturados com koji kin (esporos verdes do fungo Aspergillus oryzae), da mesma forma que para o missô kinzanji, e mantidos por três dias em uma sala fechada, chamada muro, onde a temperatura é cuidadosamente controlada. Ali, os grãos germinam, e seus amidos são convertidos em açúcares, que favorecem a fermentação.
Em seguida, esta mistura é colocada em barris de madeira com enormes quantidades de água doce e sal (que substituem os vegetais ricos em água utilizados para o missô kinzanji) e fermentada por pelo menos um ano e meio para atingir o mesmo tipo de sabor suave e complexo do missô kinzanji.
A produção em massa
Homem de aparência forte, Kano afirma que grande parte do seu trabalho é feita manualmente — o que inclui misturar regularmente a massa dos seus 34 grandes barris com longas pás de madeira e pressionar o molho de soja da mistura quando ficar pronto. Por fim, Kano aquece lentamente o shoyu em um caldeirão de ferro por meio dia para interromper a fermentação, usando madeira de pinho para o fogo.
Mas apenas cerca de 1% do shoyu produzido no Japão por cerca de 1,2 mil companhias ainda é feito da forma tradicional, utilizando barris de madeira, segundo Keiko Kuroshima, inspetora e avaliadora credenciada de molho de soja. Autodenominada sommelier de shoyu (há apenas três no Japão), Kuroshima é autora do guia definitivo do molho de soja: Shoyu Hon (“O livro do shoyu”, em tradução livre), publicado em 2015.
“A maior parte do molho de soja é produzida em massa, em tanques de aço inoxidável, para criar consistência de sabor no menor período de tempo possível, muitas vezes usando meios artificiais para acelerar a fermentação”, ela explica.
“Os barris de madeira ajudam a criar maior diversidade de sabor devido aos micro-organismos que vivem neles. Também refletem melhor a técnica do produtor e sua maior dedicação ao processo.”
O molho de soja da Kadocho, com sabor característico do shoyu produzido em Yuasa, é encorpado e tem um sabor intensamente rico, mas ainda assim tem um aroma agradável e é aveludado como um conhaque envelhecido. Seu sabor reflete, em parte, o uso de uma proporção maior de soja, rica em proteínas, em relação ao trigo, em comparação com o padrão da indústria.
A maioria dos produtores, até mesmo os tradicionais, usa uma proporção de 50:50 de soja e trigo, o que produz um shoyu menos encorpado e com sabor mais leve.
A fábrica de molho de soja Kubota — outro produtor antigo de Yuasa — fabrica dois tipos de shoyu. Um deles, para minha surpresa, é feito com 80% de soja e apenas 20% de trigo. O outro, segundo a matriarca da família Fumiyo Kubota, é o shoyu “leve”, feito com 70% de soja e 30% de trigo.
Quando a visitei, ela estava ocupada preparando koji — a mistura de koji kin, soja e trigo — para um novo lote de molho de soja que ela vai deixar fermentando por um ano e meio a dois anos.
Enfrentando a concorrência
O número de fabricantes de shoyu em Yuasa caiu drasticamente no último século. O principal fator é a concorrência dos produtores em massa, “que competem principalmente com preço, já que a qualidade do molho de soja deles é padronizada”, segundo Kuroshima.
O shoyu fabricado tradicionalmente é cerca de duas a três vezes mais caro que o molho de soja produzido em massa.
“A concorrência é tão intensa que está retirando do mercado não só os produtores tradicionais, mas até fabricantes em massa nos últimos anos”, diz ela.
Mas alguns produtores vêm desafiando esta tendência. Um deles é Toshio Shinko, que trabalha para restabelecer a posição de Yuasa como líder na fabricação de shoyu. Shinko representa a quinta geração de proprietários da fábrica de missô kinzanji Marushinhonke — empresa fundada por sua trisavó, em 1881.
Em 2002, Shinko criou a Yuasa Soy Sauce, em um prédio novo estrategicamente localizado em uma colina nos arredores da cidade. Ele afirma que pretende “fabricar o melhor shoyu do mundo”, combinando os melhores ingredientes possíveis com técnicas antigas, como barris de madeira, além de novos métodos de produção.
E seu principal molho de soja, chamado Kuyo Murasaki, inclui um ingrediente especial: um pouco do raro subproduto tamari do missô kinzanji da família.
Shinko criou também uma linha de produtos especializados, incluindo molho de soja orgânico e halal, para garantir a presença do condimento na mesa dos consumidores pelos próximos anos.
O reconhecimento oficial de Yuasa como berço do shoyu revitalizou a comunidade, prometendo mais variações e usos do molho de soja.
E, para celebrar este futuro fascinante, antes de sair da Yuasa Soy Sauce, parei na cafeteria da fábrica e me deleitei com uma casquinha do seu sorvete de shoyu — delicioso.
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Fonte Notícia: www.bbc.com