Colesterol, a biomolécula que ninguém quer no corpo, mas sem a qual morreríamos
- A. Victoria de Andrés Fernández
- The Conversation*
O Homo sapiens, da mesma forma que os demais seres vivos, é pouco mais que um conjunto de moléculas orgânicas ordenadas no tempo e no espaço. Dentre estas moléculas, existe uma que se destaca pela má reputação e pelo estigma de fazer mal: o colesterol.
O colesterol é a biomolécula banida, marginalizada, a pária da química orgânica. Todo mundo já ouviu falar dela, mas ninguém a quer como protagonista do seu corpo.
Afinal, o que sabemos realmente sobre ela? O primeiro ponto — e, se alguém me perguntar, o mais importante — é que, sem o colesterol, estaríamos mortos.
O colesterol e sua importância para a vida
O colesterol desempenha um papel fundamental para a execução de funções vitais no organismo. Aqui estão alguns exemplos convincentes:
– O colesterol é um componente fundamental das membranas celulares dos animais (as células vegetais possuem moléculas com função análoga, chamadas sitosterol e estigmasterol). Ele atua regulando a fluidez destas membranas, como se fosse um porteiro de boate — ou seja, controlando quem entra e quem fica de fora da “festa” montada no citoplasma celular.
– A partir da molécula de colesterol, são sintetizados os hormônios sexuais. Ou seja, seu estimado estrogênio e/ou sua valorizada testosterona nada mais são que derivados deste lipídio esteroide formado a partir do ciclopentanoperidrofenantreno — ou esterano, para os íntimos. Sem o colesterol, seríamos apenas seres assexuados, no que se refere às características sexuais secundárias.
– O colesterol é também precursor do cortisol (hormônio relacionado ao aumento da glicemia) e da aldosterona (hormônio que eleva a pressão sanguínea). Em outras palavras, sem eles, seria muito reduzida a nossa capacidade de reação rápida diante de uma situação de perigo ou estresse biológico.
– O colesterol é fundamental para o metabolismo do cálcio, por ser o precursor da vitamina D (por isso, esta vitamina se chama colecalciferol). Sem o colesterol, nosso esqueleto seria claramente ineficiente, e a osteoporose fraturaria nossos ossos ao menor impacto.
– O colesterol é também o substrato bioquímico para formação dos sais biliares, substâncias segregadas pela nossa vesícula biliar que nos permitem emulsionar as gorduras que ingerimos.
– Por fim, em certas regiões das membranas (especialmente as neuronais), segundo estudos recentes, o colesterol (associado aos glicolipídios e esfingolipídios) formaria microdomínios celulares fortemente impermeáveis, relacionados ao combate a patógenos como bactérias ou vírus.
Então qual é o problema?
Diante de tudo que foi exposto acima, fica difícil entender por que os médicos têm tanto interesse em reduzir nosso nível de colesterol no sangue. Vamos tentar esclarecer a questão.
A forma que o organismo tem de movimentar as substâncias por meio do nosso corpo é pelo sangue. Mas o sangue é um líquido aquoso, e o colesterol é uma molécula hidrofóbica totalmente insolúvel em meios hídricos. Para poder movimentá-la, nossa fisiologia recorre a uma invenção similar aos bombons de chocolate: as lipoproteínas.
São macromoléculas cujo recheio seria a parte hidrofóbica (basicamente colesterol e triglicérides) e a cobertura de chocolate seria formada por proteínas e fosfolipídios, com a parte hidrofílica voltada para fora. Isso possibilita que o bombom trafegue por meio do sistema circulatório — e o colesterol viaje, na verdade, como passageiro deste “trem”.
Acontece, no entanto, que determinados tipos de lipoproteínas, quando presentes em um nível muito alto, correm sérios riscos de incrustar-se nas paredes das nossas artérias, produzindo as temidas placas de ateroma. Ou seja, os “trens” de colesterol descarrilam, obstruindo o tráfego.
Mas nem todas as lipoproteínas apresentam o mesmo nível de risco aterogênico. Por isso, e como o nosso colesterol total pode ser fracionado de acordo com a lipoproteína que o conduz, os vários tipos de colesterol têm fama muito diferente.
Há cinco tipos de lipoproteínas no nosso sangue: os quilomícrons, as lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL), de baixa densidade (LDL), de densidade intermediária (IDL) e de alta densidade (HDL).
Destas, apenas três estariam diretamente relacionadas ao transporte do colesterol — e uma delas, quando elevada, é a que apresenta sério risco de obstruir nossos encanamentos biológicos.
Estas três lipoproteínas geram as três frações de colesterol conhecidas:
O bom
As lipoproteínas de alta densidade (ou simplesmente HDL, na sigla em inglês) são as que transportam o colesterol para o fígado. Nele, uma parte será utilizada para a síntese de hormônios, e o restante é eliminado por meio da bílis até o tubo digestivo. Dali, para o exterior por meio das fezes.
Como o papel do HDL é retirar o colesterol dos tecidos periféricos (incluindo o depositado nas paredes das artérias) para o fígado, a fração do colesterol que viaja pelo sangue a bordo deste “trem” (o colesterol HDL) é denominada colesterol bom.
O ruim
As lipoproteínas de baixa densidade (ou LDL, na sigla em inglês) são lipoproteínas associadas diretamente ao risco de doenças coronarianas, que liberam o colesterol do fígado para a corrente sanguínea. O colesterol LDL teria quatro efeitos prejudiciais básicos para nossas artérias:
– Reduz o diâmetro do vaso sanguíneo, diminuindo o fluxo nesta região.
– Cria irregularidades na superfície das paredes dos vasos, gerando “turbulências” no fluxo sanguíneo e causando a formação de novas irregularidades por retroalimentação.
– Se as placas crescerem, elas podem obstruir todos os “encanamentos”, provocando uma estenose (estreitamento) do vaso sanguíneo e até mesmo enfartando o tecido irrigado, por falta de oxigênio. Se isso acontecer na ponta do dedo mindinho de um dos pés, provavelmente nem ficaremos sabendo. Mas, se acontecer nas artérias coronarianas (as que irrigam o coração), nos causará um indesejado enfarte do miocárdio.
– A placa que causa obstrução do vaso sanguíneo pode se desprender (em sua totalidade ou em partes) da parede do vaso. Mas, neste caso, a desobstrução não deve ser comemorada. O “tampão” (trombo) viajará pela corrente sanguínea e voltará a ficar preso onde menos se espera, com consequências muito variáveis. Se for na extremidade do lóbulo da orelha, não vai tirar nosso sono, mas, em uma artéria cerebral, vai causar um derrame que tirará algo muito mais grave (talvez a própria vida).
O feio
Da mesma forma que o LDL, as lipoproteínas de muito baixa densidade (ou VLDL, na sigla em inglês) liberam o colesterol do fígado para a corrente sanguínea.
Mas o colesterol VLDL (com este nome tão feio e complicado) é considerado um fator de avaliação do colesterol menos relevante que o colesterol LDL por duas razões. Primeiro, porque transporta uma proporção muito maior de triglicérides que de colesterol. E, segundo, porque sua determinação analítica é muito complexa, e os laboratórios recorrem a métodos indiretos que não são representativos quando os triglicérides estão muito elevados no sangue.
Nestes casos, o valor do colesterol VLDL confunde mais do que ajuda.
Vantagens e desvantagens da classificação
Esta classificação é prática e facilmente compreensível para o público em geral, o que representa uma clara vantagem.
Além disso, é útil desde que os valores das frações de colesterol não sejam considerados só em função do seu valor absoluto, mas também ponderando a importância das relações HDL/LDL e colesterol total/colesterol HDL (índice de Castelli ou de aterogenicidade).
No entanto, também tem seus inconvenientes. Muitos analistas, como eu, acham que esta classificação pode levar a generalizações equivocadas.
De fato, nem sempre a fração HDL elevada significa a garantia de um “efeito ateroprotetor”. Além disso, as funções das lipoproteínas são muito mais complexas que o simples transporte das moléculas, o que induz ao erro de acreditar que algumas (HDL) são benéficas para a saúde e outras (LDL), não.
Conclusão: feio não é o colesterol VLDL. Feia é a classificação.
* A. Victoria de Andrés Fernández é professora titular do departamento de biologia animal da Universidade de Málaga, na Espanha.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em espanhol).
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Fonte Notícia: www.bbc.com