Como a implosão da URSS está na raiz da guerra na Ucrânia
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- Shin Suzuki
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Após o colapso da União Soviética em 1991, o historiador norte-americano Francis Fukuyama fez uma análise ambiciosa e cunhou uma expressão que marcou a época: com o fim da Guerra Fria, a democracia liberal ocidental era a forma de governo vencedora e dominaria o mundo a ponto de decretar “o fim da história”. A desintegração da antiga URSS acabou, na verdade, por criar as condições para a maior tensão mundial em décadas.
O presidente Vladimir Putin justifica o ataque militar que gera uma crise humanitária de grandes proporções e desrespeita leis do direito internacional ao apontar uma tática expansionista da Otan, a Aliança Militar do Atlântico Norte, em direção ao território russo.
Os componentes geopolíticos do atual conflito passam pelo que analistas internacionais consideram equívocos históricos dos Estados Unidos e da Otan a partir de 1991. Mas há outros fatores-chave da questão como a estratégia russa de constante interferência sobre ex-repúblicas soviéticas (15 países surgiram com o colapso da URSS) e um plano agressivo de retomada de sua influência mundial.
“É inegável que os EUA perderam uma oportunidade histórica no final da Guerra Fria de criar uma comunidade de segurança na Europa que englobasse a Rússia”, diz Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da USP e coordenador do Observatório da Democracia no Mundo (ODEC-USP).
“Dito isso, a forma como a Rússia agiu [ao atacar a Ucrânia] é injustificável do ponto de vista das relações internacionais, do direito internacional.”
A partir dos anos 1990, a Otan abriu suas portas para países que pertenceram ao bloco comunista (República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Polônia, Bulgária, Romênia, Albânia), ex-repúblicas soviéticas (Estônia, Letônia e Lituânia) e países dos Balcãs (Croácia, Eslovênia, Montenegro e Macedônia do Norte), essa uma região de laços tradicionais com a Rússia.
Depois começaram as conversas para inclusão na Otan de Ucrânia e Geórgia, duas outras ex-repúblicas soviéticas.
“A diplomacia russa questionava a expansão da Otan no Leste Europeu argumentando que, uma vez que o Pacto de Varsóvia [a aliança militar do bloco comunista] foi extinto no fim da Guerra Fria, a Otan também deveria ter sido extinta”, afirma Vicente Ferraro, mestre em ciência política pela Escola Superior de Economia de Moscou e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP.
“A intervenção da aliança em Kosovo em 1999 [na Guerra dos Balcãs] representou um dos primeiros grandes atritos entre EUA e Rússia no período pós-Guerra Fria. Em um discurso emblemático em 2007, Putin ressaltou o seu incômodo com a presença e atuação da aliança próximo às fronteiras russas, chegando a fazer ameaças concretas”, diz Ferraro.
Para Felipe Loureiro, a decisão de primeiro manter a Otan e depois expandir para o leste foi resultado de fatores múltiplos e complexos, não única e exclusivamente de um projeto hegemônico dos EUA.
“Mas quando você expande uma determinada aliança, quando você se arma no sistema internacional, é compreensível que um outro país, principalmente uma potência aniquilada no pós-Guerra Fria, interpretasse isso como algo que a ameaçasse”, analisa.
Em seu livro de memórias, Robert M. Gates, ex-secretário norte-americano de Defesa nas gestões George W. Bush e Barack Obama, disse que “a relação com a Rússia foi muito mal administrada depois que [George] Bush [pai] deixou o governo em 1993”.
Vicente Ferraro lembra, no entanto, que os países do Leste Europeu e as ex-repúblicas soviéticas tiveram seus próprios motivos para a adesão à Otan.
“Vale salientar que a expansão da Otan e da União Europeia no leste não foi uma simples invasão. Houve a intenção de países da região em aderir à aliança em consideração a fatos históricos, políticos e ideológicos. Havia temor de um eventual expansionismo russo. A atuação da URSS no Leste Europeu durante a Guerra Fria deixou ressentimentos na região, do mesmo modo que a atuação dos EUA deixou ressentimentos na América Latina”, diz.
Interferência na vizinhança
A influência atual da Rússia em países vizinhos se manifesta de forma política, econômica e militar. Moscou lidera uma aliança militar, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), que inclui Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão.
No último dia 6 de janeiro, enquanto a tensão crescia na Ucrânia, a Rússia mandou milhares de paraquedistas ao Cazaquistão como “tropas de manutenção de paz” para controlar as manifestações populares contra o presidente local por causa da alta do combustível.
“Em 2005, Putin declarou que o fim da URSS foi ‘a maior catástrofe geopolítica’ do século 20, dando indícios de sua intenção em restabelecer, ao menos em parte, a influência russa nos países vizinhos”, diz Ferraro, do Laboratório de Estudos da Ásia da USP.
“Tal paradigma causou apreensão em países vizinhos, como a Ucrânia.”
Em 2008, o presidente russo Dmitry Medvedev (Putin foi designado premiê à época) afirmou que o país tinha poder de veto sobre a política interna dessas nações por conta de “interesses privilegiados” da esfera russa.
“A partir de 2008, a Rússia passou a recorrer ao uso da força para resguardar a sua hegemonia no espaço pós-soviético. Naquele período, invadiu a Geórgia para repelir um ataque do governo local contra uma região separatista. Durante a crise ucraniana de 2014, incorporou a Crimeia ao seu território e deu suporte militar e econômico às lideranças separatistas do leste”, afirma Ferraro.
Mitologia e identidade russa
A consolidação de Putin no poder também marcou a construção de um projeto que resgata as conquistas do passado russo e uma ideia de “homem forte”.
“A gente pode dizer que esse conflito na Ucrânia faz parte de um projeto de longo prazo do Putin. Ele tem uma concepção de nacionalismo russo que a gente pode dizer que é bem próxima à concepção do czarismo no final do século 19”, diz Loureiro, do departamento de relações internacionais da USP.
“É a ideia de uma nação pan-russa que, apesar das diferenças étnicas, tem uma língua comum, uma religião comum (o cristianismo ortodoxo) e a centralidade na figura do czar, que no caso da Rússia contemporânea é o próprio Putin.”
Na concepção de Grande Rússia, há dois países cruciais: a Bielo-Rússia (pequena Rússia, a atual Belarus, aliado mais próximo de Putin) e a Ucrânia.
“No século 9, vikings que utilizavam o rio Dnieper para comercializar madeira e âmbar entre o mar Báltico e o Mar Negro se estabeleceram nas cercanias de Kiev”, explica Fabiano P. Mielniczuk, coordenador de ciência política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
“O líder era chamado Rurik. Ele e seu filho são considerados os primeiros governantes dos Russos (chamados na época de Kievan Rus). Com o tempo, os Rus se espalharam para além de Kiev [atual capital da Ucrânia] e chegaram até Moscou. Com o tempo também, eles se dividiram em principados e passaram a disputar o poder.”
Por isso, observa Loureiro, “a Ucrânia tem espaço importante no imaginário da identidade nacional”.
Esse nacionalismo está no cerne do conservadorismo russo, que defende “valores tradicionais” em oposição ao que chamam de “valores liberais ocidentais decadentes” – aprovação do casamento gay, diminuição do protagonismo masculino e falta de centralidade no papel da família.
Mielniczuk analisa que “Putin representa o que restou aos russos na busca pela redefinição das suas identidades após o fim da guerra fria. O Ocidente fechou as portas para negociações sérias sobre o papel dos russos na ordem pós-Guerra Fria, tratando-os como perdedores”.
“O processo de reconstrução da identidade russa se desenvolveu tendo o Ocidente como antagonista”, complementa.
É um interesse comum com o líder chinês Xi Jinping, com quem Putin anunciou uma “parceria sem limites”.
“A ordem será marcadamente multipolar novamente. Por ser uma invenção ocidental, o aumento de poder de polos não ocidentais vai necessariamente se refletir em uma crítica às instituições do ocidente, como a democracia liberal”, diz Mielniczuk.
Loureiro diz que “Putin vem transformando o estado russo em um estado crescentemente autocrático e centrado na personalidade dele. Ele e Xi Jinping sustentam que os regimes que eles comandam garantem maior centralização, maior coerência, uma suposta maior unidade coletiva que representa mais eficiência, rapidez e coerência para lidar com os desafios do século 21”.
“Esse me parece que vai ser um embate importante, ideologicamente falando, das relações internacionais no século 21.”
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Fonte Notícia