O cadáver que se tornou o mais improvável herói da 2ª Guerra Mundial
“A única coisa que ele fez que valeu a pena aconteceu depois de sua morte.”
A visão do oficial de inteligência britânico Ewen Montagu sobre o galês Glyndwr Michael pode parecer muito dura.
Afinal, após sua morte aos 34 anos, Michael ajudou a acabar com a Segunda Guerra Mundial mais cedo do que poderia ter acontecido, salvando centenas de milhares de vidas.
Em abril de 1943, o corpo do galês foi usado por agentes da inteligência britânica na chamada “Operação Mincemeat”, considerada a mais audaciosa de todo conflito.
O plano britânico conseguiu enganar os alemães, que redistribuíram regimentos inteiros da Sicília, na Itália, para a Grécia e os Bálcãs.
O livro do historiador Ben Macintyre sobre a farsa, intitulado “Operation Mincemeat” (sem versão em português), foi transformado em um filme da Warner Bros que acaba de ser lançado no Reino Unido. No Brasil, o filme ganhou o título “O Soldado que Não Existiu” e será lançado pela Netflix em maio.
“Glyndwr Michael é possivelmente o herói mais improvável de toda a Segunda Guerra Mundial”, acredita Macintyre.
“Ele fugiu do País de Gales para Londres para escapar da pobreza extrema durante a Grande Depressão da década de 1930. Seu próprio pai cometeu suicídio após o colapso do trabalho na mineração.”
O historiador explica que o corpo de Michael foi encontrado em um galpão na área de King’s Cross, em Londres e, de acordo com o laudo forense, ele havia tomado veneno.
Mas o historiador acredita que o ato não foi um suicídio.
“Acho que Michael deveria estar com tanta fome que comeu pão envenenado por engano”, aponta.
História digna de James Bond
Qualquer que seja a causa da morte de Glyndwr Michael, seus restos mortais foram entregues ao legista Bentley Purchase.
O especialista havia sido alertado para a necessidade de encontrar um corpo cujos ferimentos fossem parecidos ao que ocorre com uma vítima da queda de um avião, em que o pára-quedas não funcionou como o esperado.
O cadáver, então, foi transferido aos cuidados dos agentes Charles Cholmondeley e Ewen Montagu. Foi assim que a transformação de Glyndwr Michael no comandante William Martin começou.
A ideia de usar um cadáver para entregar planos falsos em território inimigo foi concebida pela primeira vez na década de 1930 por Ian Fleming, autor dos romances de espionagem de James Bond.
Fleming trabalhou durante a Segunda Guerra Mundial como assistente de John Godfrey, diretor da Divisão de Inteligência Naval da Marinha Britânica.
No final de 1942, o sucesso dos Aliados numa campanha no norte da África permitiu que eles voltassem a atenção para outras áreas controladas pelos alemães no sul da Europa.
A Sicília, na Itália, era o lugar óbvio para lançar uma operação, já que o domínio da ilha significava o controle da navegação no Mar Mediterrâneo.
O problema era que a opção por este local era óbvia demais.
O homem que nunca foi
“Todo mundo, exceto um tolo, sabe que a operação será na Sicília”, declarou o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill.
No entanto, isso não impediu que os Aliados quisessem tomar a Sicília como um trampolim para a Itália. E, para isso, eles realizaram um ato espetacular de distração.
Os agentes Cholmondeley e Montagu foram trabalhar nos detalhes que tornariam o engano mais crível para os alemães.
Eles deram ao falso oficial uma identidade e uma história abrangentes, começando com a escolha do nome William Martin, relativamente comum nos fuzileiros navais britânicos.
Eles também conferiram ao suposto militar o posto de capitão, que consideravam alto o suficiente para portar documentos secretos, embora não tão importante a ponto de ser um rosto conhecido pelo inimigo.
Os agentes então escolheram itens do dia a dia que qualquer um levaria consigo. No caso de Martin, isso significava chaves, selos, cigarros, fósforos, um medalhão de São Cristóvão, canhotos de ingressos de teatro, um recibo de uma camisa nova, uma carta de seu pai e até um aviso de cheque especial do banco.
Todos os documentos foram escritos com uma tinta especial, que não escorreu na água.
Ewan Montagu passou meses criando a identidade do falso oficial. Mas Ben Macintyre diz que a parte mais convincente do quebra-cabeça era a noiva de Martin, uma jovem chamada Pam — na verdade, uma oficial da inteligência britânica chamada Jean Lesley.
“O nível de detalhes em que eles entraram foi incrível — eles até vestiram o suposto uniforme e peças íntimas de Martin para que parecessem roupas usadas na medida certa”, detalha o historiador.
“Tive a sorte de conhecer ‘Pam’ (Jean Lesley) quando tinha 80 anos, e ela me levou pelo rio Tâmisa até o ponto em que ela e ‘William’ supostamente ficaram noivos.
À época, a esposa de Montagu se convenceu de que ele estava tendo um caso.”
Cholmondeley e Montagu prepararam o corpo e o carregaram em um recipiente cheio de gelo seco para uma viagem até a Escócia. O veículo foi conduzido por um campeão de automobilismo no pré-guerra.
Na Escócia, um submarino chamado HMS Seraph estava esperando. O veículo demorou 10 dias para chegar ao “ponto de entrega”.
Vale dizer que a tripulação do submarino desconhecia o propósito da missão. Assim que os oficiais deixaram o corpo de Martin na água, os motores foram acelerados para que a corrente o empurrasse em direção à costa da Espanha.
Nas primeiras horas de 30 de abril de 1943, um pescador de sardinha espanhol encontrou o oficial britânico supostamente afogado perto da cidade de Huelva.
A inteligência militar alemã caiu na arapuca, e uma cópia das cartas de Martin descrevendo os planos para uma operação aliada na Grécia acabou na mesa de Adolf Hitler.
Ao mesmo tempo, em um porão escuro do prédio da Marinha em Londres, homens e mulheres da inteligência britânica comemoraram batendo nas mesas e pulando para cima e para baixo quando a mensagem para Hitler foi interceptada por instalações militares dos Aliados.
Uma última conexão galesa
Macintyre conta que havia outra conexão galesa que acabou convencendo Hitler de que o corpo era genuíno.
“Uma das cartas do pai de Martin foi supostamente escrita de um hotel em Mold (uma cidade no País de Gales)”, diz o historiador.
“Quando eu estava pesquisando meu livro, voltei ao registro original do hotel, e realmente havia o nome do Sr. Martin escrito na data correta da carta. Os detalhes da história são incríveis.”
Os britânicos confessaram uma pretensa decepção com um telegrama para os espanhóis, facilmente interceptado, pedindo a devolução da maleta de Martin o mais rápido possível.
“Documentos secretos provavelmente em uma pasta preta. Informações necessárias o mais rápido possível. Devem ser recuperadas imediatamente. Deve-se tomar cuidado para que não caia em mãos erradas”, dizia o telegrama.
Em 38 dias após a invasão aliada da Sicília, em 10 de julho de 1943, a ilha foi capturada pelos Aliados. Pouco depois, a Itália inteira caiu, provocando a queda do regime de Benito Mussolini.
Glyndwr Michael foi enterrado em Huelva com todas as honras militares.
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Fonte Notícia: www.bbc.com