O jovem brasileiro que foi à Justiça para se livrar do serviço militar
- Letícia Mori
- Da BBC News Brasil em São Paulo
A Justiça concedeu a dispensa do serviço militar para Samuel*, de 19 anos, após o jovem processar o Exército — a decisão é liminar, então ainda pode ser revertida. Samuel já estava servindo, mas vai poder deixar o quartel e prestar serviço alternativo.
Samuel entrou na Justiça alegando objeção de consciência por ser pacifista.
Em 2021, quando ele completou 18 anos — a idade para o serviço militar obrigatório — e precisou se alistar, ele não imaginava que seria convocado. “Não tenho físico para isso, não sou forte nem atlético, e sempre fui contra isso ser obrigatório”, diz ele à BBC News Brasil.
“Eu sou pacifista, contra violência. Não quero treinar para a guerra.”
Em geral, quem não deseja servir consegue a dispensa do serviço militar, já que existe excesso de contingente. Com Samuel, no entanto, foi diferente.
Quando foi se alistar no Tiro de Guerra em sua cidade, no interior do Ceará ele não foi dispensado — mesmo deixando claro durante o processo que não tinha o desejo de servir. “Eu falei em todas as entrevistas”, conta.
O jovem também não sabia que tinha o direito, garantido pela Constituição, de alegar objeção de consciência para evitar o serviço militar bélico e prestar o serviço alternativo em tempos de paz.
Quando descobriu, enviou ao Exército o pedido de prestação do serviço alternativo ao serviço militar.
Nesse meio tempo, ele havia se associado ao Livres – movimento liberal que começou no PSL e saiu do partido em 2018, quando Jair Bolsonaro se filiou para concorrer à presidência. Uma das principais bandeiras do grupo é a campanha pelo fim do serviço militar obrigatório.
Segundo o presidente do Livres, Magno Karl, a entidade já ajudou mais de 800 jovens a pedir a dispensa. O grupo oferece assessoria para pedir a dispensa aos associados, que pagam um valor mensal para ser parte da organização.
“Samuel foi o único que chegou a entrar com um processo na Justiça. Os outros conseguiram através do requerimento de serviço alternativo”, explica Magno Karl.
Isso porque a resposta para o pedido do jovem demorou tanto para chegar que ele já estava servindo. Quando chegou, era uma negativa.
O advogado Irapuã Santana afirma que Samuel passou por um enorme “entrave burocrático que o impediu de ter seus direitos garantidos”.
“Não caberia ao Exército negar o requerimento, é um direito garantido pela Constituição”, afirma Santana, que entrou com um mandado de segurança contra a instituição das Forças Armadas.
“Me disseram que o pedido precisava ser aprovado em Fortaleza, que iam mandar. Eu perguntava várias vezes se tinha resposta, perguntava, perguntava, mas não tinha atualização. Passou mais de um mês. Quando chegou, eu já estava servindo”, conta o jovem à BBC.
“Fiquei muito chateado”, diz. “Tem gente aqui querendo servir e não pode, por excesso de contingente. E eu que não quero servir eles me obrigaram.”
A justificativa dada pelo Exército para o jovem foi de que o requerimento não poderia ser aceito porque Samuel já estava matriculado nas suas fileiras como atirador.
“Quando ele fez o pedido, ele não tinha se matriculado ainda”, diz Irapuã Santana, advogado do Livres que representa Samuel no processo – o jovem conta com ajuda do grupo, mas qualquer pessoa pode fazer o requerimento de serviço alternativo, mesmo sem advogado. “Além do mais, não existe na legislação uma data limite para alegar objeção de consciência, é algo que pode ser alegado a qualquer momento.”
Questionado pela BBC News Brasil, o Exército afirmou que o pedido de Samuel havia sido “indeferido por apresentação fora do prazo legal”.
Questionado em que lei ou regra administrativa apontava esse prazo, o Exército disse que o comando Militar do Nordeste responderia essa pergunta – o que não aconteceu até a publicação desta reportagem.
O Exército afirmou ainda que “em nenhuma oportunidade, o referido atirador manifestou descontentamento com sua experiência no Serviço Militar ao Chefe de Instrução”.
O juiz Flávio Marcondes Rodrigues, que concedeu a dispensa para Samuel, afirmou que não prestar o serviço militar bélico por objeção de consciência é um direito que não está sujeito a prazos.
“A objeção de consciência não guarda pertinência com prazos preclusivos”, escreve o magistrado, que determina que o Exército faça o Certificado de Dispensa para Samuel.
O Exército ainda não recorreu da decisão.
Objeção de Consciência
A obrigatoriedade do serviço militar obrigatório está formalizada na Constituição Federal de 1988 que, no entanto, também garante o direito à liberdade de pensamento e de consciência.
Por isso, a Constituição determina que quem tem objeção de consciência religiosa ou filosófica tem o direito de prestar serviço alternativo.
O juiz Flávio Rodrigues aponta que o serviço militar surgiu no Brasil em 1542, quando o país ainda era uma colônia de Portugal administrada sob o sistema das capitanias hereditárias.
Na história contemporânea, está “imbricado com a própria formação e manutenção institucional do Estado brasileiro”, diz ele, que destaca a “importância histórica dessa obrigatoriedade”.
No entanto, na decisão, o magistrado — que cita jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) nesse sentido — afirma que tanto o direito à liberdade quanto o serviço militar obrigatório são valores importantes que podem ser equacionados em casos concretos.
Rodrigues relembra que dispensar os candidatos que não desejam servir é uma política já adotada pelo Ministério da Defesa desde 2007, quando foi incluída na ficha de seleção uma opção para quem não deseja prestar e que não requer sequer justificativa.
Samuel – que agora pretende buscar outro emprego para ajudar sua família – afirma que nunca entendeu porque houve tantas dificuldades no seu caso.
“Não entendi porque fizeram isso comigo (indeferiram seu requerimento). Não faz sentido”, diz. “É um direito meu que não podia ter sido negado.”
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Fonte Notícia: www.bbc.com