O país onde tocar acordeão pode levar à morte
A rivalidade entre estrelas de um estilo musical baseado no acordeão e típico do reino africano de Lesoto está na raiz de conflitos sangrentos que se arrastam há anos.
Essa animosidade alimenta conflitos entre grupos que disputam o controle de minas ilegais, o que fez com que o pequeno país se tornasse o lugar com mais homicídios na África.
“Talvez eu tenha sobrevivido porque sou uma mulher”, diz Puseletso Seema em voz baixa. Mal dá para notar que, no passado, aquela mesma voz encantou milhares de fãs em estádios no sul da África.
Conhecida como a rainha do famo, o principal ritmo musical de Lesoto, ela está sentada no sofá de sua casa – uma pequena e simples construção de blocos de tijolo.
“Todos querem exibir sua masculinidade portando uma arma”, ela diz.
O famo surgiu quando composições de poetas orais – viajantes ou pastores de rebanhos que compunham enquanto cruzavam as montanhas de Lesoto – passaram a ser acompanhadas pela concertina e, depois, pelo acordeão.
Até que, em 2004, após um famoso músico de famo supostamente atirar contra outro, um ciclo de vinganças teve início e foi impulsionado por composições provocativas.
‘Todos querem ganhar’
Nas últimas duas décadas, centenas de pessoas ligadas ao gênero – produtores, fãs, DJs e parentes de músicos – foram assassinadas.
“Eles chegam na casa procurando por você – e você não está lá. Eles matam a esposa, eles matam as crianças, eliminam todos da família. Vilarejos e vilarejos viraram orfanatos por causa do famo”, diz um dos primeiros promotores do gênero, Sebonomoea Ramainoane.
Muitos tiveram que fugir de casa. Os conflitos ligados ao famo foram a principal razão pela qual Lesoto, um país rural com só 2 milhões de habitantes, tivesse o sexto maior índice de homicídios do mundo em 2021. O Brasil tem o 12º maior índice.
“Inveja, nada além de inveja”, Seema disse sobre o início da matança. “Quando artistas começam a ganhar fama, eles gravam músicas cheias de insultos”.
Seema, assim como a maioria das estrelas do famo, teve uma infância pobre e difícil. “Comecei a cantar muito nova”, ela diz. “Eu costumava cuidar de rebanhos. Esse não é um trabalho de meninas, mas eu brigava com meninos nas pastagens.”
Ela saiu de casa em busca de sucesso na África do Sul, onde cantava para milhares de homens de Lesoto que trabalhavam em minas sul-africanas de diamantes. Acredita-se que o famo tenha surgido nessas minas no meio do século 20.
O nome pode ter surgido de “wafamola”, palavra na língua sesotho que quer dizer “flamejante” – referência à forma exuberante com que mulheres dançam a música.
Seema encorajou um compatriota chamado Bereng Majoro a entrar no ramo. Seu nome artístico era Lesake, ou “caixão”.
“Cantar é uma competição”, ele me diz em sua casa nos arredores da capital do Lesoto, Maseru. “Todos querem ser o vencedor”.
Artistas do famo e seus fãs, tanto na África do Sul quanto em Lesoto, se dividiram em grupos adversários, reconhecidos pela cor dos panos tradicionais que vestem. O grupo Terene, um dos maiores, usa cor amarela; o grupo Seakhi, azul e preto.
Quando algum músico era ameaçado, Lekase, que ainda vive na África do Sul, se escondia. Ele sempre carregava uma arma.
Uma das vítimas do conflito foi o artista de famo Salope Mohlobuti, alvejado em casa no distrito montanhoso de Matelile, em 2010. Em sua última música, ele provocava os assassinos de outro músico, seu primo, chamando-os de “garotinhos”.
Hoje, o filho de Salope, Malefetsane, tem 17 anos e mantém a música em seu celular em memória ao pai. Mas ele diz que prefere virar pastor de rebanhos do que um músico.
“Não ouço mais esse tipo de música tanto assim, porque as letras são muito provocativas. Tudo envolve matar e eu não quero me envolver nisso. Essa música matou meu pai.”
Alguns músicos, como Puseletso Seema, não se envolvem com violência. Ela diz que nunca insultou ninguém em uma música.
“Cantei sobre tudo na minha vida… sobre minha vida de casada, e, quando meu casamento acabou, também cantei sobre os problemas do meu casamento.”
Mas todos vinculados ao famo podem correr algum tipo de risco. Até DJs foram mortos, diz Tsepang Makakole, apresentador da MoAfrika FM.
“Quando você está no rádio, precisa garantir que todos os dias tocará todos os grupos. Se você se esquecer de um, eles dirão: ‘Você não gosta da gente’. Eles então atiram em você.”
Morte em festa de ano novo
Agora, porém, os homicídios não acontecem só por conta da música. Grupos de famo rivais também batalham pelo controle do lucrativo mercado de minas ilegais de ouro na África do Sul.
No fim do ano passado, um garimpeiro, Sello Ntaote, voltou para casa em Lesoto pela primeira vez em três anos para visitar a esposa e os dois filhos pequenos. Dias depois, foi assassinado na festa de Ano Novo com outros três convidados.
Seus amigos acreditam que ele foi morto porque deixou uma mina controlada por um grupo famo e passou a trabalhar em outra, controlada por um grupo rival. E isso teria sido interpretado como uma forma de “traição”.
Na mesma semana, outros três homens morreram em conflitos que podem estar relacionados ao famo.
Horrorizados pelos ataques, muitos moradores organizaram um protesto. Uma líder comunitária disse que recebeu ameaças de morte só por falar sobre a violência. Muitos acusaram a polícia de falhar em protegê-los ou até mesmo de se aliar aos criminosos.
Em novembro, 75 armas sumiram de uma delegacia em Mafeteng. O vice-ministro de Assuntos Domésticos, Maimane Mapathe, disse à BBC que os policiais venderam as armas a grupos de famo. O caso está sob investigação.
Laços entre políticos e grupos de famo são conhecidos há bastante tempo. Ntei Tsehlana, líder de um dos maiores e mais temidos grupos de famo, Terene, trabalhava como motorista do ministro de Assuntos Domésticos até ser morto em abril de 2022.
Tsehlana não era músico e, quando vivo, disse à BBC que seu grupo não era uma gangue. Segundo ele, tratava-se de uma sociedade que colaborava com o financiamento de funerais.
Tsehlana também disse que jamais ordenou um assassinato. “Como líderes do grupo, tentamos parar essa matança… Só que, às vezes, não consigo controlar, porque nossos membros dizem: ‘Não podemos ignorar quando estamos sendo atacados'”, ele diz.
Maphathe, o vice-ministro de Assuntos Domésticos, disse à BBC que Tsehlana foi empregado como motorista numa tentativa de acalmar os ânimos, porque “quando algumas dessas pessoas estão empregadas, outros percebem a importância de ter um emprego, e eles vão trabalhar duro para ajudar o governo na luta contra essas mortes”.
Mas Tsehlana se tornou ele próprio vítima da violência. Ele foi alvejado em 2 de abril de 2022 por um homem desconhecido que, acredita-se, pertence ao grupo rival Terene. Tsehlana estava num show organizado por um partido político quando foi atingido por disparos. Ele morreu no hospital.
A polícia diz que está investigando o caso.
Shows de famo hoje são raros – organizadores dizem que é muito arriscado realizá-los.
Puseletso Seema, a rainha do famo, diz que a violência “destruiu nosso negócio”.
Hoje ela tem grandes dificuldades para sustentar a família e diz se arrepender de ter se envolvido com o famo.
“Sinto dor. Alguns de nós costumávamos viver dessa música, mas agora sofremos para sobreviver”, ela diz.
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Fonte Notícia: www.bbc.com