O polêmico muro que divide dois países em ilha no Caribe
- Daniel García Marco
- Enviado da BBC News Mundo ao Haiti e República Dominicana
Não era um dia comum na República Dominicana.
Em 20 de fevereiro de 2022, o presidente do país, Luis Abinader, vestindo um colete amarelo sobre uma camisa branca, apontou uma betoneira cheia de concreto para uma vala sobre a qual foram levantadas finas hastes de aço. O público ao redor tirou muitas fotos dele.
Esse foi o primeiro passo para a construção da “cerca perimetral inteligente”, estrutura que vai separar a República Dominicana do Haiti e que todos chamam de “muro” na fronteira. Ao fundo, a música de Juan Luis Guerra, dois bispos e a liderança militar acompanhavam atentamente as ações do presidente e da betoneira.
A construção é um novo episódio na conflituosa e histórica relação entre os dois países que compartilham a Ilha de Hispaniola (também conhecida como Ilha de São Domingos), além de uma fronteira porosa de mais de 390 quilômetros.
“A República Dominicana não pode assumir a crise política e econômica daquele país (Haiti) ou resolver o resto de seus problemas”, disse Abinader em um ato com forte simbolismo patriótico em que o hino nacional foi cantado vigorosamente a poucos metros do Haiti, o país mais pobre das Américas.
Segundo os últimos dados do Banco Mundial e do governo dominicano, 60% da população haitiana vive na pobreza, contra 24% na dominicana. A pobreza extrema chega a 24% no Haiti enquanto é de 3,5% do outro lado da fronteira.
54 quilômetros
Os primeiros metros da cerca já podem ser vistos em Dajabón, no noroeste da República Dominicana, um dos principais pontos de fronteira com o Haiti.
Oito dias após o início da construção, a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, visitou o local. O trabalho havia sido interrompido. Apenas uma escavadeira permaneceu com o motor ligado. Dois soldados entediados guardavam a área. Vacas mugiam e lixo plástico foi armazenado no terreno ao lado.
A poucos passos do muro e do lugar de onde Abinader discursou, algumas crianças haitianas tomavam banho e algumas mulheres lavavam suas roupas no rio Masacre, cuja escassa corrente de água forma uma fronteira flexível entre os dois países.
O muro promete ser muito mais firme.
Em uma primeira fase, com conclusão prevista para o primeiro semestre deste ano, segundo o governo dominicano, serão construídos 54 quilômetros de betão armado e estrutura metálica, como o traçado em Dajabón. Além disso, haverá 19 torres de vigia e 10 portões de acesso. O muro não vai cobrir toda a extensa fronteira territorial, mas se elevará acima das “áreas mais populosas e sensíveis”.
Na segunda fase, que deve começar assim que a primeira estiver concluída, serão construídos mais 110 km de muro, com um investimento total de cerca de US$ 30 milhões (R$ 145,1 milhões), segundo dados do governo.
“É um muro que vai beneficiar os dois países. Vai controlar o comércio bilateral, regular os fluxos migratórios para combater as máfias que traficam pessoas, além de lidar com o narcotráfico e a venda ilegal de armas, e proteger a criação e as colheitas de pecuaristas e produtores agrícolas”, disse Abinader.
‘Não gosto do muro’
Nenhum membro do governo haitiano esteve presente no ato de 20 de fevereiro. Também não comentou a construção do muro, erguido em solo dominicano.
O Haiti tem um governo interino desde que o presidente Jovenel Moise foi assassinado, em julho do ano passado. As eleições para um novo presidente foram adiadas devido ao elevado nível de violência no país, segundo o atual Poder Executivo chefiado por Ariel Henry.
A crise econômica em curso no Haiti, os desastres naturais e os conflitos políticos historicamente fizeram com que muitos haitianos buscassem uma vida melhor, ou pelo menos uma maneira de ganhar dinheiro, no país com o qual compartilham a ilha.
Uma dessas pessoas é Novilia, uma haitiana que mora na República Dominicana. Ela vive uma casa feita de chapa e piso de areia, a poucos metros da primeira vala da cerca que Abinader inaugurou.
“Os haitianos fazem negócios com os dominicanos aqui. Por que temos que erguer um muro? Não temos presidente no Haiti e as coisas estão difíceis”, diz a mulher, que está no país vizinho há 12 anos.
“Eu não gosto (do muro), é ruim para os negócios, todo mundo tem dificuldade, todo mundo está procurando alguma coisa aqui (na Dominicana)… Não é bom”, diz, ao lado de um vizinho e amigo, também haitiano. O rapaz afirma ser capaz de limpar três casas dominicanas em uma única manhã.
Como centenas de haitianos em Dajabón e milhares em toda a República Dominicana, a dupla reflete os laços econômicos que unem os dois povos, especialmente ao longo da fronteira.
De acordo com a última Pesquisa Nacional de Imigrantes na República Dominicana, em 2017 havia meio milhão de haitianos no país, representando 87% da população estrangeira. Mas, cinco anos depois e com o acirramento dos problemas no Haiti, especialistas dizem que esse contingente de imigrantes pode ser 25% maior.
Esses haitianos são fundamentais para a economia dominicana, a segunda que mais cresceu na América Latina e no Caribe na última década. Estima-se que 80% da força de trabalho nos setores agrícola e de construção civil na República Dominicana seja haitiana.
Em 2021, o Haiti foi o terceiro maior destino das exportações dominicanas depois da Suíça e dos Estados Unidos, segundo dados da Direção Geral de Alfândegas.
Mas a balança comercial é extremamente favorável à República Dominicana, algo de que se queixa o Haiti, que pede mais ajuda financeira para exportar rum, cerveja e tabaco, sobretudo, para o outro lado da fronteira.
Em 2021, a República Dominicana gastou US$ 4 milhões (cerca de R$ 20 milhões) em importações de produtos haitianos. Por outro lado, exportou US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) em produtos nacionais ao país vizinho.
Necessidade mútua
Para além da economia, a relação entre haitianos e dominicanos acontece em um nível mais modesto na fronteira.
“O dominicano precisa do haitiano, o haitiano precisa do dominicano”, resume Novilia em sua humilde casa.
Apesar dessa realidade ser aceita por quase todos na ilha, muitos haitianos enfrentam problemas para regularizar sua situação imigratória e, às vezes, convivem com hostilidade de seus vizinhos do leste.
Em um pasto com dezenas de gados, Ernesto Alfonso Martínez Peña destaca a necessidade mútua de ambos os lados da linha.
“O presidente (Abinader) deve canalizar legalmente quem vem trabalhar na fazenda. Se os haitianos não vierem, a produção de leite, a agricultura e a construção vão cair”, diz Martínez, que é a favor do muro porque sofreu com roubos de gado – crime que ele atribui aos haitianos.
Um mercado sem muro
Ernesto Peña, o fazendeiro, não é o único que defende a construção do muro.
Santos tem 58 anos, é dominicano e dirige uma das milhares de barracas do Mercado Binacional de Dajabón, que abre todas as segundas e quintas-feiras para reunir comerciantes dos dois lados da fronteira.
Às 8h da manhã, a ponte sobre o rio Masacre se enche de haitianos que, carregando fardos de mercadorias nos ombros, cruzam o local e correm diante do olhar vigilante e às vezes ameaçador de soldados dominicanos armados e vestidos com terno de campanha marrom-claro.
“Há muito tempo somos invadidos. Há mais haitianos aqui do que no Haiti”, exagera Santos, que vende molhos e conservas no mercado.
“Quem tem trabalho aqui são os haitianos. É ruim para nós. O que podemos ganhar está sendo ganho por eles”, reclama.
No entanto, ele também admite que “viver junto é bom”.
“É isso que você vive na fronteira: negócios com haitianos”, ele nos conta.
Ela divide sua barraca no mercado – onde a música alta esconde o burburinho das compras e vendas na fronteira – com um amigo haitiano, que troca dinheiro.
Santos é uma das muitas pessoas na fronteira que se beneficiam do comércio com os haitianos, mas ao mesmo tempo se distanciam deles.
A acadêmica britânica Bridget Wooding, pesquisadora da imigração haitiana na República Dominicana, resume essa forma do dominicano de se relacionar com o vizinho, que oscila entre a convivência e o repúdio. “Os haitianos são necessários, mas indesejados”, diz.
Outras paredes
Wooding vê o muro como um elemento “extremo” na dura história dominicana em relação aos haitianos, em sua maioria negros. Essa história remonta aos tempos do ditador Rafael Leónidas Trujillo (1930-1961) e seu projeto do branqueamento da sociedade dominicana.
Mais recentemente, continuou com a polêmica decisão de 2013 que “desnacionalizou” mais de 130 mil dominicanos de ascendência haitiana.
O Tribunal Constitucional dominicano entendeu que pessoas nascidas no país desde 1929 e cujos pais estrangeiros não tivessem personalidade jurídica não correspondiam à nacionalidade dominicana.
Em maio de 2014, o Congresso dominicano aprovou uma lei de naturalização em resposta a essa decisão que causou críticas internacionais. No final de 2013, também foi decretado um plano de regularização para estrangeiros.
Mas nada disso gerou processos eficazes ou simples para milhares de haitianos e descendentes nascidos na República Dominicana.
“Eles tiveram que se registrar como estrangeiros no país onde nasceram e, depois de dois anos, naturalizar-se como dominicanos”, explica Wooding, que conhece os trâmites burocráticos.
Uma dessas pessoas é Zuleica Jiménez.
Ela mora com o marido Rafael e seus filhos na comunidade rural de Pinzón, perto de Comendador, na província dominicana de Elías Piña, centro do país.
Seus pais haitianos foram documentados na República Dominicana, onde ela nasceu. Zuleica, no entanto, nunca foi registrada e agora não possui os documentos que comprovem sua nacionalidade.
“Nasci e cresci em Elías Piña, mas não tenho documentos e me sinto mal porque tenho meus filhos sem declarar”, diz Zuleica, ao lado do marido, em sua precária casa à beira de uma estrada de terra, a poucos metros da fronteira – área em que Haiti e República Dominicana se misturam até se fundirem.
Após a lei de 2014, Zuleica tentou regularizar sua situação. “Gastei muito dinheiro com isso em vão… Depois de levar os papéis para Santo Domingo (capital dominicana), nada aconteceu.”
Ela é a favor do muro, mas preferiria que o governo de seu país, que não a reconhece e a mantém apátrida, gastasse o dinheiro de forma diferente.
“Estou mais interessado em gastá-lo no processo. O muro é importante, mas estou interessado no processo.”
Por que agora?
Em 2019, o então presidente Danilo Medina já havia construído alguns quilômetros de um muro na província de Elías Piña, que agora será superado pela moderna cerca tecnológica.
Mas Abinader, eleito em julho de 2020, foi mais longe ao apostar no muro como nenhum político local havia feito.
A Presidência e os ministérios da Defesa e de Relações Exteriores não responderam aos inúmeros pedidos de entrevistas da BBC News Mundo para falar sobre o muro e os processos de regularização como o de Zuleica Jiménez, bem como sobre as recentes deportações de mulheres grávidas haitianas.
Bridget Wooding, diretora do Centro de Pesquisa Aplicada em Dinâmica Migratorias (Obmica), afirma que o “muro perimetral faz parte de um projeto que tenta mostrar o haitiano como um invasor”.
“Há muito preconceito contra um grupo étnico e seus descendentes, os haitianos, devido às complexidades da história sociocultural”, diz.
O sociólogo dominicano Juan Carlos Pérez, professor da Universidade Autônoma de Santo Domingo e graduado pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, argumenta que há um sentimento anti-hiatiano entre parte da elite dominicana.
“Os políticos tentam ganhar o apoio do voto usando um discurso que divide para que os daqui se sintam protegidos dos de lá. É uma forma de desviar a atenção dos problemas reais de um país, usando uma população migrante como causador do mal”, afirma.
E ele alerta para as consequências do novo.
“Nenhuma política de boa vizinhança pode ser promovida a partir da política do muro. Isso tem um efeito simbólico de agressão, violência e maus-tratos à população que vive do outro lado.”
O muro econômico
Essa opinião é compartilhada por Lesly Theogene, diretor do Ministério do Comércio e Indústria do Haiti, que prefere falar como cidadão e não como membro do governo interino.
“Achamos que Abinader poderia construir um muro econômico, não um muro eletrificado que vai causar mortes”, diz ele, sobre a ponte que liga os dois países em Dajabón, a cidade fronteiriça onde começa o muro e que reflete as tensões, mas sobretudo os laços de benefício mútuo entre os dois povos.
Santiago Riverón, prefeito da cidade fronteiriça dominicana, concorda com ele.
“Um muro não vai separar esses dois países. Bem ou mal, estamos condenados a viver juntos, eles no país deles e nós no nosso.”
Riverón, de chapéu e voz grossa, faz parte do partido do presidente Abinader.
No entanto, ele não concorda que a cerca vai parar a imigração ilegal e diz que o que é necessário é “um muro econômico”, ou seja, um projeto de desenvolvimento empresarial que beneficie os dois países e que torne desnecessária a migração.
Ele cita como exemplo a zona franca, que no meio da fronteira de Dajabón emprega 18 mil trabalhadores haitianos e da qual dependem cerca de 40 mil pessoas na área.
“Essas pessoas que estão trabalhando lá nunca vão deixar sua terra natal.”
Jocelin é um dos haitianos que deixaram o país — ele tinha 12 anos. Como ele, muitas crianças haitianas continuam a atravessar sozinhas a ponte de Dajabón para a República Dominicana todos os dias para trabalhar em qualquer emprego.
“Passei fome no Haiti”, recorda Jocelin, prestes a completar 18 anos, em um centro de acolhimento em Ouanaminthe, no lado haitiano da fronteira, onde se vê claramente o contraste com o lado dominicano: há poucas ruas pavimentadas, muito mais lixo nas ruas e falta de saneamento básico.
Jocelin engraxava sapatos no país vizinho. Ele acabou em um orfanato em Dajabón, onde hoje muitas crianças haitianas são vistas vagando sozinhas ou em grupos, sem nenhum adulto. Elas se oferecem principalmente para engraxar sapatos, mas muitos são vítimas de trabalho e exploração sexual.
De volta ao Haiti, no centro de acolhimento Lakay Jezy (A Casa de Jesus), Jocelin encontrou três refeições por dia, um luxo para muitas crianças haitianas, e a obrigação de sair das ruas e voltar à escola.
Agora ele se tornou costureiro e quer ganhar a vida como alfaiate. Seus colegas adolescentes pedem para ele ajeitar seus jeans para que fiquem mais apertados e elegantes.
“Na República Dominicana há pessoas que nos tratam bem e outras que nos tratam mal”, diz, de maneira tímida.
“Quero trabalhar, ter independência pessoal, quero ficar no Haiti, amo o Haiti”, diz quando questionado sobre o futuro.
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Fonte Notícia: www.bbc.com