O que é o ‘Mundo Russo’ que Putin quer unificar
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- Fernanda Paúl
- BBC News Mundo
A dramática guerra que acontece neste momento na Ucrânia ameaça ser o evento mais transformador e perigoso na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Nos últimos dias, o presidente russo, Vladimir Putin, intensificou o ataque às principais cidades do país, como Kherson, Kharkiv e a capital, Kiev.
E ele não dá sinais de que vai parar, apesar das duras sanções impostas à Rússia pelo Ocidente.
Muitos analistas estão se perguntando recentemente o que está realmente se passando pela cabeça de Putin.
Uma das respostas mais conhecidas em outros países, especialmente nos Estados Unidos, é que a Rússia é e sempre foi um Estado expansionista e que Putin é a personificação desta ambição: construir um novo império russo.
E é aqui que surge o conceito “Russkiy Mir” ou “Mundo Russo”.
Como Fiona Hill, uma das maiores especialistas em Rússia dos Estados Unidos, disse em entrevista ao site Politico, Putin vem articulando a ideia de que existe um espaço em que ucranianos e russos são “o mesmo povo”, e que sua missão é reunir todos os falantes de russo de diferentes lugares que já pertenceram ao czarismo.
Mas como se define exatamente o Russkiy Mir, que sinais Putin deu de que quer unificá-lo e como a invasão da Ucrânia pode ser fundamental para alcançar este objetivo? A seguir, explicamos para você.
O que é o ‘Russkiy Mir’?
Embora não haja uma definição acadêmica clara do que Russkiy Mir significa especificamente, diferentes analistas tentaram explicar o conceito.
Para alguns, é o mundo que compreende toda a comunidade associada à cultura russa, que compartilha uma história, uma língua e certas tradições. Pela mesma razão, é difícil definir uma fronteira.
Para outros, há um conjunto territorial básico que poderia ser o núcleo deste mundo e que poderia incluir a própria Rússia, assim como Belarus, Ucrânia e Cazaquistão, entre outros.
“Há dois critérios para definir o Russkiy Mir. O primeiro é o cultural, que engloba a cultura russa como um todo, incluindo fora do território”, explica Juan Manuel de Faamiñán Gilbert, professor emérito da Universidade de Jaén, na Espanha.
“O segundo conceito é geográfico e se baseia no que foi o antigo império czarista criado por Catarina, a Grande. Poderia se estender até a região sul, junto ao Mar Negro ou até mesmo à Geórgia”, acrescenta.
Mas para Sergey Goryashko, jornalista do serviço de notícias em russo da BBC, a definição do mundo russo na cabeça de Putin não tem fronteiras.
“Alguns anos atrás, alguns alunos de escola perguntaram a Putin onde termina a fronteira russa. E ele respondeu que não termina em lugar nenhum”, lembra ele à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
“E essa pode ser a definição do que o mundo russo realmente significa para Putin. Porque se olharmos para suas ações desde 2014 (quando a Crimeia foi anexada), elas provam exatamente que o mundo russo não termina em lugar nenhum. O mundo russo é o mundo inteiro”, acrescenta.
Outro elemento importante a ser considerado ao definir o Russkiy Mir é o papel da Igreja Ortodoxa Russa, com milhões de seguidores em todo o mundo.
Dentro desta religião, se promove a ideia de uma unidade espiritual e cultural da comunidade russa como um todo, que se consagra por meio deste conceito.
Assim, a igreja é uma grande aliada da ideologia por trás do mundo russo.
Putin sempre promoveu o ressurgimento da Rússia como potência mundial.
E criticou fortemente alguns ex-líderes russos que, na sua opinião, condenaram a União Soviética à sua desintegração (que finalmente se materializou em 1991).
“Putin disse muito claramente que (Vladimir Illich) Lenin destruiu o mundo russo e que não estabeleceu uma verdadeira Rússia. Nesse sentido, ele admira mais os czares, como Catarina, a Grande ou Ivan, o Terrível”, diz Juan Manuel de Faramiñán Gilbert.
“Depois, ele disse que Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin são os autores do desmembramento do verdadeiro coração da Rússia”, acrescenta o acadêmico.
Para Putin, após a dissolução da União Soviética, as fronteiras foram “definidas de forma absolutamente arbitrária e nem sempre justificada”.
Foi o que ele afirmou em um ato de seu movimento político em 2016.
“Donbas, por exemplo, foi transferida para a Ucrânia sob o pretexto de aumentar a porcentagem do proletariado na Ucrânia para ganhar mais apoio social lá. Um disparate”, declarou o presidente russo.
Em 12 de julho de 2021, em um longo artigo sobre as relações com a Ucrânia publicado no site do Kremlin, Putin deu mais pistas sobre seu interesse em reunificar o mundo russo.
O mandatário remontou à época do antigo povo rus, considerado o ancestral comum da população da Rússia, Belarus e Ucrânia, e destacou os vários marcos da história comum para defender sua visão de que russos e ucranianos são “um só povo”.
Além disso, nos últimos anos, Putin reforçou sua retórica contra países ocidentais, o que para alguns especialistas também faz parte dessa ambição de aumentar o poder da Rússia no mundo.
“Ele diz cada vez mais em seus discursos que tudo de ruim é por causa do Ocidente, por causa de suas ações hostis contra a Rússia”, explica Sergey Goryashko.
“Depois de 2014, o que aconteceu na Crimeia, tudo se voltou para a construção do Mundo Russo e também para a retórica hostil do Ocidente”, acrescenta.
Em 2007, Putin criou uma fundação chamada Russkiy Mir destinada a promover a língua e a cultura russas no mundo, como um projeto global.
Por que a Ucrânia é importante?
A Ucrânia não é apenas mais um país no mundo para Vladimir Putin.
Um dos momentos mais difíceis de sua longa trajetória como presidente ocorreu em 2004, quando após a “revolução laranja” Viktor Yushchenko, considerado pelo Kremlin um “fantoche” de Washington, venceu as eleições ucranianas.
Foi uma enorme humilhação para Putin, pois foi percebida como se ele tivesse perdido a Ucrânia. Analistas garantem que o presidente russo nunca esqueceu esta derrota e tampouco a perdoou.
“A visão dominante do nacionalismo russo é que a Ucrânia é uma nação irmã eslava e, além disso, é o coração da nação dos rus. É uma ideologia muito poderosa que faz da Ucrânia um elemento central da identidade russa”, explica Gerald Toal, professor de Relações Internacionais da Universidade Virginia Tech, nos Estados Unidos, à BBC News Mundo.
“Por isso, há emoções muito fortes quando a Ucrânia como nação se define em oposição à Rússia. Isso causa muita raiva e frustração na Rússia, que se sente traída por um irmão”, acrescenta.
Neste contexto, a capital ucraniana, Kiev, assume especial relevância.
“Kiev é desde o início o que se chamou de mãe das cidades russas. Kiev é mais a capital de todo este conjunto do Mundo Russo que Moscou ou São Petersburgo”, diz Juan Manuel de Faramiñán Gilbert.
“Se Putin tomar a Ucrânia, tenho certeza de que ele mudaria a capital para Kiev, porque para ele o imaginário espiritual de Kiev é muito mais forte do que o de Moscou.”
É que para a Igreja Ortodoxa Russa, Kiev é vital. Tanto que, em 2019, o Patriarca de Moscou e Toda a Rússia, Kirill, comparou a capital ucraniana com o significado de Jerusalém para o cristianismo global, segundo o meio de comunicação russo TASS.
O que vai acontecer?
De acordo com Fiona Hill, isso não significa que Putin queira anexar todos os territórios “Russkiy Mir“, como fez com a Crimeia.
Mas, como disse a especialista ao Politico, “pode estabelecer o domínio margeando os países regionais, garantindo que seus líderes sejam completamente dependentes de Moscou”, vinculados às redes econômicas, políticas e de segurança russas.
Em parte, ele já vem fazendo isso.
O Cazaquistão foi nomeado “aliado número um de Moscou”, e esta relação próxima foi demonstrada em janeiro deste ano, quando Putin decidiu enviar tropas de apoio ao governo local para conter os violentos protestos que surgiram após o aumento considerável do preço do petróleo no país.
Belarus, por sua vez, está completamente subjugada a Moscou. E desde a invasão russa da Ucrânia tem desempenhado um papel fundamental, servindo como base para operações militares da Rússia.
Mas para Sergey Goryashko, do serviço de notícias em russo da BBC, ninguém sabe realmente o que vai acontecer.
“Vou ser honesto. Apenas duas semanas atrás, eu tinha 100% de certeza de que não haveria uma guerra real na Ucrânia. E agora acho que a Ucrânia não é o principal objetivo de Putin. É apenas mais um de seus objetivos”, conclui.
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