Os dilemas da pediatra que cuida de crianças em estado terminal
- Nathalia Passarinho – @npassarinho
- Da BBC News Brasil em Londres
Médicos e enfermeiros emocionados se despediam de Manuella, que, vestida de azul e rosa e laço na cabeça, recebia naquele dia alta do hospital após meses de internação. Um misto de alegria e tristeza se desenhava no rosto dos cuidadores. Era uma alta diferente.
Manuella, de 1 ano e 8 meses, estava indo para casa para viver seus últimos dias, cercada pelos pais e avós. Iria rever toda a família, o seu quartinho e brinquedos antes de morrer.
“A equipe de pediatria estava toda lá e o pessoal da UTI saiu para vê-la. Até quem estava fora do hospital foi até lá tirar foto com ela e se despedir. Ficamos muito emocionados. Tinha a tristeza de saber que era o fim da vida dela, mas foi também bonito, porque sabíamos que ela estava saindo para ser cuidada pela família”, relatou à BBC News Brasil a pediatra intensivista Cinara Carneiro, que cuidou da bebê enquanto ela esteve internada na UTI do Hospital Otoclínica, em Fortaleza.
Carneiro trabalha com cuidados paliativos no Sistema Público de Saúde (SUS) e em hospital particular. Ela se dedica a cuidar de crianças com enfermidades ou condições de saúde sérias, que podem não ter muito tempo de vida pela frente. A missão é garantir que o tempo que a criança tiver de vida seja o melhor possível- que ela receba atenção individualizada, afeto, tenha experiências, e não sinta dor.
Por isso, quando possível, Carneiro tenta viabilizar que a criança tenha alta do hospital e receba cuidados em casa. No caso de Manuella, a preocupação era garantir que a menina convivesse o máximo possível com toda a família – que a mãe e o pai pudessem aproveitar cada minuto com a filha e se despedir.
“Em casa, eles iam conseguir ter uma dinâmica mais saudável, com mais privacidade e com a presença de outros familiares. No ambiente hospitalar, a gente não tem como receber a visita da avó, da tia, de amiguinhos”, diz.
Carneiro lembra que ficou emocionada ao receber da mãe de Manuella uma imagem da bebê em casa.
“Tinha uma expectativa grande de ela estar no quartinho dela. E, quando ela chegou em casa, a mãe mandou foto para a gente. A Manu estava lá na caminha, com coberta toda rosa e ursinho.”
Qualidade de vida x mais dias de vida
Carneiro diz que a decisão de dar alta a Manuella envolveu toda a equipe médica e a família da menina, após perceberem que não havia mais tratamento para o câncer de cérebro que ela enfrentava.
A menina chegou a passar por cirurgias e fazer quimioterapia, mas o tipo do tumor era muito agressivo. Em busca da cura, os pais pediram opiniões de diferentes profissionais. Mas a bebê, que no início do tratamento era ativa e até mandava beijinhos para as pessoas, já não se comunicava, não se mexia, nem saía da cama. Foram muitas idas e vindas ao hospital durante o tratamento, totalizando cinco meses de internação.
Pai e mãe se desdobravam para trabalhar, se deslocar ao hospital e ficar com a filha o máximo de tempo possível. “Eram pais muito dedicados, presentes, nunca reclamaram nem de cansaço, embora pudessem estar exaustos”, conta Carneiro.
A médica afirma que um dos dilemas ao enviar um paciente terminal para casa e evitar intervenções invasivas é aceitar que, em alguns casos, a criança poderá viver menos dias, embora tenha dias melhores enquanto viver.
“Pode ser que aconteça (a morte) mais cedo, porque, querendo ou não, não vai ter uma equipe lá que para fazer uma intervenção mais invasiva, intubação ou tratamento rápido de um quadro infeccioso”.
“Mas é importante entender que a proposta é ter qualidade naqueles poucos dias e não obrigatoriamente ter mais dias.”
Carneiro destaca, no entanto, que o excesso de intervenções em alguns casos também pode acabar encurtando a vida, em vez de prolongar.
“Quando você entra com um plano de cuidados paliativos, algumas intervenções que são entendidas como fúteis não são oferecidas. E essas intervenções, às vezes, são a causa de um fim mais breve, com paciente morrendo na mesa de operação.”
‘Retorno à maternidade na sua plenitude’
Para os pais de Manuella, ter a filha em casa significou a oportunidade de exercer o papel de pai e mãe na sua plenitude. Eles voltaram a ser os cuidadores principais da filha.
“No hospital, a rotina é orientada por nós, médicos, a medicação é dada pela equipe médica. Com a ida para casa, a mãe e o pai puderam voltar a ser a referência no cuidado, a planejar a rotina e a vida da filha, como faziam quando ela nasceu”, lembra Carneiro.
“Foi muito especial ver essa volta da maternidade e paternidade na sua plenitude.”
Os pais tiveram duas semanas em casa com Manuella, antes de ela morrer.
A oportunidade de se despedir de um parente em casa ainda é muito rara no Brasil. A imensa maioria das crianças e adultos com doenças incuráveis acaba morrendo nos hospitais. Alguns acabam passando por intervenções que prolongam a vida, sem necessariamente garantir conforto ou qualidade de vida.
Dilemas e desafios
Cinara Carneiro destaca que uma equipe especializada precisa desenhar um plano de cuidado para viabilizar que o paciente passe seus últimos dias fora do hospital. E, segundo ela, muitos profissionais resistem a autorizar a alta por receio.
Isso se deve, diz a médica, à cultura da hospitalização que prevalece no país. Burocracia e insegurança jurídica também dificultam o acesso ao direito de morrer rodeado pela família.
“O sistema é burocrático. Morrer em casa é muito difícil para adultos e crianças. E quando ocorre o óbito domiciliar, a declaração de óbito é complexa. Uma equipe médica precisa ir até a casa para verificar a morte. Sem isso, o corpo não pode ser liberado e vai para o Instituto Médico Legal”, diz.
Portanto, ela destaca, é preciso ter um planejamento que envolva diferentes profissionais e um médico ciente do prontuário da criança para ser acionado no momento da morte e garantir a liberação do corpo, se o paciente estiver em casa.
“Esse médico vai conhecer o histórico da criança e vai fazer a declaração de óbito, porque senão essa criança vai para um IML. Num momento de sofrimento, essa seria uma dinâmica que traria mais dor. Então, eu tenho que ter construído do hospital ao domicílio um plano de ação que inclua o momento do óbito.”
Em caso de plano de saúde particular, a família do paciente precisa encontrar uma equipe de médicos disposta a esse tipo de cuidado, com home care (estrutura hospitalar em domicílio) e médico de home care ciente que, em alguns dias ou meses, poderá ter que declarar o óbito da criança em casa.
“Se você é paciente e tem um plano de saúde, aí você tem que ter home care e o seu meu médico do home care tem que estar alinhado com você.”, diz.
No Sistema Único de Saúde, essa possibilidade é mais remota, porque o médico da unidade de Pronto Atendimento próxima à casa da família tem que estar ciente do prontuário da criança e alinhado com a estratégia de cuidado paliativo.
“Mas, se você estiver no SUS, você não consegue morrer em casa. A não ser que você tenha o seu posto de saúde funcionando bem. E lá, tem que ter um profissional de referência seu, que te conheça, e que ele não rode. Mas a gente sabe que os profissionais de saúde circulam”, diz.
“E a gente tem muito profissional recém-formado trabalhando na ponta. Então, entendo que ele se sinta inseguro, e ele precisa que nós, que somos especializados, entreguemos um plano completo, e que ele confie em nós. Então eu preciso ter um especialista, um paliativista e um colega na ponta que pode ser o médico da atenção primária à saúde ou o médico do home care alinhados com o plano de cuidado.”
Cinara Carneiro defende que o SUS invista mais em cursos sobre cuidados paliativos para profissionais da atenção básica, para que se sintam menos inseguros diante da opção pela morte em casa.
“Eles têm que começar a entender que esse fim de vida, seja para pacientes idosos ou crianças, pode ser proporcionado em casa.”
Ela destaca, porém, que a família do paciente precisa receber apoio e informação para garantir que os últimos dias de vida dele ocorram da maneira mais leve possível e sem dor física.
“Não é simples. No caso da Manu, tivemos que ensinar a usar o opióide, porque ela precisava de morfina. Os pais também aprenderam a usar sonda, porque ela era alimentada por lá, e a lidar com sintomas como constipação causados pela morfina”, relata a médica, acrescentando que a equipe também detalhou para os pais os sintomas e comportamentos que ocorrem no momento da morte.
A médica e a família da menina acreditam que o esforço valeu à pena. A mãe de Manuella autorizou a BBC News Brasil a usar as fotos da bebê e a contar a história dela.
“Infelizmente, não foi possível curar a Manuella, mas conseguimos fazer com que esse processo fosse mais leve para que a família pudesse fechar esse ciclo. A despedida é sempre dolorosa, não é fácil, mas é também um processo que envolve muito amor”, conclui Cinara Carneiro.
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Fonte Notícia: www.bbc.com