Treinado na selva, Bruno Pereira superou desconfiança e ganhou respeito de indígenas
- Leandro Prazeres
- BBC News Brasil em Brasília
Quando Beto Marubo viu Bruno Araújo Pereira em 2010, então com 30 anos, o indígena duvidou daquele jovem alto, branco e corpulento.
Beto era o responsável por dar uma espécie de curso aos novatos que estavam tomando posse como indigenistas na Fundação Nacional do Índio (Funai).
As aulas incluíam incursões na selva ainda preservada da Terra Indígena Vale do Javari, no Oeste do Amazonas, e testava até os mais resistentes. Não demorou muito, porém, para que a desconfiança inicial se dissipasse.
“Ele não parecia que ia aguentar o tranco. Era muito branco, muito alto, muito grande. Mas ele tinha uma resistência física impressionante e se interessou muito pelo que a gente tinha a ensinar”, contou Marubo. “Ele chegou como aluno, mas depois virou um irmão”, completou.
Doze anos depois, Beto Marubo e dezenas de indígenas que conheciam de perto o trabalho de Bruno atuam nas buscas ao indigenista e ao jornalista britânico Dom Phillips, que estão desaparecidos desde o dia 5 de junho na mesma região de floresta onde Bruno iniciou sua carreira na Funai.
Marubo é coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), entidade para a qual Bruno estava atuando como consultor.
A área é conhecida pela atuação de garimpeiros, pescadores ilegais e narcotraficantes, e também por abrigar a maior quantidade de indícios de povos isolados do Brasil.
Bruno era considerado uns dos maiores especialistas em indígenas que vivem em isolamento ou de recente contato do país.
Ele viajava com o Dom Phillips pelo Vale do Javari quando a dupla desapareceu. As polícias Civil e Federal não descartam nenhuma hipótese, mas, nos últimos dias, aumentaram os rumores de que a dupla poderia ter sido vítima de uma emboscada.
As suspeitas são de que eles poderiam ter sido vítimas de um atentado praticado por grupos afetados pela atuação de Bruno na região, que visava a proteção dos indígenas contra a invasão de garimpeiros e pescadores ilegais.
Ao longo dos últimos dias, um homem teve a prisão preventiva decretada por suposta conexão com o crime. A polícia encontrou vestígios de sangue em seu barco.
A polícia também localizou matéria orgânica aparentemente humana próximo ao município de Atalaia do Norte (a 1.136 quilômetros de Manaus). O material genético está sendo periciado pela Polícia Federal.
O desaparecimento da dupla gerou comoção internacional e fez com que organismos estrangeiros como a o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos cobrasse uma resposta mais célere do governo brasileiro no trabalho de buscas.
Nesta segunda-feira (13/06), veículos de imprensa informaram que os corpos da dupla teriam sido encontrados, mas a Polícia Federal emitiu uma nota desmentindo a informação.
Amazônia, liderança e asma na floresta
Bruno Pereira entrou na Funai na turma de 2010, um dos últimos concursos públicos feitos pelo órgão. Criado em Pernambuco, deixou o nordeste em meados dos anos 2000 para realizar um sonho: trabalhar na Amazônia.
“O primeiro emprego dele na Amazônia foi numa empresa terceirizada que atuava próximo à hidrelétrica de Balbina, no Amazonas. Não demorou muito e ele começou a prestar serviços para a Funai. Quando veio o concurso, ele passou e, em 2010, começou a trabalhar para o órgão”, conta Beto Marubo.
Para vencer completamente a desconfiança, Bruno não contou apenas com a ajuda de indígenas como Beto.
Pouco depois de tomar posse, ele passou uma temporada acompanhando o trabalho do indigenista Rieli Franciscato na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Franciscato morreu em 2020 atingido por uma flecha durante uma expedição ao território de indígenas isolados.
“Ele foi para Rondônia e fez uma ou duas viagens. O Franciscato foi uma espécie de grande professor para todo mundo que queria aprender sobre os povos isolados e o Bruno aprendeu muito com ele. Quando ele sai de Rondônia e volta para o Amazonas, ele já era um grande conhecedor do assunto”, disse Carlos Travassos, que chefiou a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai entre 2011 e 2016.
A coordenação é a responsável por implementar políticas de proteção e monitoramento aos povos isolados e foram contactados recentemente no Brasil. Essas populações se encontram na Amazônia e são consideradas vulneráveis tanto ao avanço de atividades ilegais quanto do agronegócio, que pressiona a fronteira agrícola do país cada vez mais ao norte.
De acordo com a Funai, há 114 registros de povos isolados no país. Oficialmente, a política do governo brasileiro é de evitar o contato com esses indígenas e garantir a proteção às terras onde eles vivem.
“Bruno voltou (ao Amazonas) muito preparado e, depois de um tempo, passou a conhecer o Vale do Javari muito bem. Ele sabia se orientar tanto pelos dados cartográficos quanto pelo conhecimento indígena que tinha aprendido. A única coisa que atrapalhava, um pouco, é que ele tinha umas crises de asma de noite. Mas ele tomava os remédios estava tudo bem”, relembrou Beto Marubo.
Travassos contou que Bruno era conhecido entre os colegas como um profissional extremamente sério e qualificado e que conhecia bem o trabalho de campo e o funcionamento da administração pública.
Ele atuou como coordenador regional da Funai no Vale do Javari até 2016, quando foi exonerado do cargo após um conflito entre indígenas de diferentes etnias terminar em morte.
Em 2018, porém, ele assumiu a coordenação geral de povos isolados, em Brasília. Sob o seu comando, o órgão realizou a maior expedição para contato de indígenas em 20 anos.
A expedição tinha, justamente, o intuito de evitar novos conflitos entre o povo Matis, que já tem contato com os não-indígenas, e o povo Korubo, que vive em isolamento.
“A gente se aproximou muito porque temos a personalidade parecida. Ele é bem sério e focado, mas ao mesmo tempo, é uma pessoa extremamente bem-humorada e brincalhona”, contou Travassos.
“Bruno tinha a postura de um líder. No serviço público, é muito comum a gente encontrar pessoas com um perfil mais conciliador, que evita conflito. Ele não era assim. Ele se posicionava de forma bastante clara quando via alguma coisa errada”, lembrou o antropólogo Fernando Vianna, que preside a organização Indigenistas Associados (INA), que reúne servidores da Funai.
Sucesso e demissão
Entre o final de 2018 e início de 2019, Bruno procurou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) com um alerta: dragas de garimpeiros ilegais estavam se aproximando perigosamente da área onde havia registros de povos isolados no Vale do Javari.
O então coordenador de operações de fiscalização do órgão, Hugo Loss, passou a montar, junto com Bruno, uma operação para conter o avanço dos garimpeiros. O problema, no entanto, é que como as dragas já estava muito dentro da terra indígena, as aeronaves do Ibama não teriam autonomia de voo para chegar às áreas onde elas estavam.
“Foi o Bruno que resolveu todas as questões logísticas. Ele conhecia o território e nos ajudou a montar uma rota que permitiu a chegada dos nossos helicópteros na região”, lembrou Hugo Loss.
A operação aconteceu em setembro de 2019 e foi considerada um sucesso operacional. Pelo menos 60 balsas foram destruídas em uma ação conjunta da Funai, Ibama e Polícia Federal. Mesmo assim, menos de um mês depois, em outubro, Bruno foi exonerado.
“Eu liguei para ele um tempo depois da operação para falar sobre outras ações que a gente queria fazer na região e ele me disse que tinha sido exonerado. Perguntei o que ele ia fazer e ele disse que ia se dedicar a uns projetos pessoais”, lembrou Hugo Loss.
Em abril de 2020, foi a vez de Loss ser exonerado do cargo após liderar outra operação de combate a garimpos ilegais, daquela vez no Pará.
Segunda chance
Após a exoneração, Bruno pediu uma licença para tratar de assuntos particulares e passou a atuar como consultor Univaja. Entre as suas atribuições estava a estruturação de projetos voltados à proteção da região contra a atuação de garimpeiros, pescadores ilegais e narcotraficantes.
Foi nessa época que ele passou a ser ameaçado por seu trabalho na região. Segundo o jornal O Globo, uma carta com ameaças de morte contra Beto Marubo e Bruno foi enviada à Univaja.
Beto Marubo diz que as ameaças não paralisavam Bruno, mas que, nos últimos anos, os dois tomavam mais cuidado ao irem à região de Atalaia do Norte.
“O Bruno não parou por conta das ameaças, mas ele tomava muito cuidado. Não dava mais pra gente ficar em Atalaia do Norte da mesma forma que a gente ficava antes. Eu moro em Brasília e ele foi morar em Belém”, conta Marubo.
A ida de Bruno a Belém coincidiu com um novo momento em sua vida pessoal. Beto Marubo conta que Bruno tem uma filha de 16 anos fruto de um relacionamento anterior e que, por conta do trabalho, não teve como se dedicar o suficiente. Agora, ele tentava fazer diferente.
“Ele teve duas crianças com a Beatriz e, nos últimos tempos, ele falava muito sobre a saudade que tinha de estar com as crianças e com a mulher. Todas as viagens eram muito planejadas para ele não ficar muito tempo longe da família. Era como se fosse uma segunda chance pra ele”, contou Marubo.
Hugo Loss diz que o desaparecimento de Bruno e Dom Phillips o fez pensar sobre os riscos que pessoas que, como Bruno e ele, atuam na defesa do meio ambiente e dos povos indígenas.
“Quando as notícias saíram, minha mãe, meu pai, minha companheira, todo mundo me ligou preocupado. No final, eu comecei a pensar que poderia ter acontecido comigo ou com algum companheiro de trabalho. Muita gente já desapareceu e ainda vai desaparecer defendendo a Amazônia”, disse.
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Fonte Notícia: www.bbc.com