‘Teria sido melhor ver meu filho morto e me despedir’: mulher desafia tabu do ‘luto perinatal’
- Alicia Hernández – @por_puesto
- BBC News Mundo
“Eu achava que seria uma mãe normal. E era uma mamãe com os braços vazios.”
Mas a venezuelana Ileana García Mora corrige: “todas nós somos normais. A vida e a morte são processos naturais, mas uma é mais dolorosa que a outra.”
Ela se define como ativista do luto perinatal e defende a visibilidade do tema, para que se fale sobre o que fazer quando um filho morre. Para ela, “é importante que se tenha informações disponíveis, que as mães tenham escolhas e que os familiares próximos tenham as ferramentas mínimas para lidar com o luto”.
Houve uma época em que García tomou decisões sem saber, em meio à dor. Ou precisou ouvir coisas como “melhor assim, que o corpo descarte aquilo que não serve”.
Acontece que “aquilo que não serve” era Matias, seu filho, que veio à luz, morto, por cesariana.
Ela falou à BBC News Mundo – o serviço de notícias em espanhol da BBC – com seu outro filho, Gabriel, de quase um ano, mamando agarrado a ela. Gabriel é o que se chama de bebê arco-íris. E, como o fenômeno óptico, primeiro ocorre uma tempestade para que ele apareça.
O pesadelo de Ileana García começou com uma frase: “não ouço os batimentos”.
O pesadelo de García
O óbito perinatal é a morte ocorrida entre a 28ª semana de gravidez e 28 dias após o parto. Anualmente, ocorrem cerca de 2 milhões de mortes deste tipo em todo o mundo (uma a cada 16 segundos), segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em média, a gestação humana costuma durar entre 37 e 42 semanas. A perda “é mais frequente durante o primeiro trimestre; ela ocorre em uma a cada quatro mulheres”, segundo a parteira espanhola Celia Padilla.
À medida que a gravidez avança, a ocorrência diminui. “No segundo trimestre, ela afeta uma a cada 50 mulheres e, no terceiro, quatro a cada mil”, explica Padilla.
Ileana García sentiu que algo não estava bem na 38ª semana. E o médico confirmou o pior.
Foram apresentadas duas opções: parto normal ou cesariana. García, depois dessa experiência, defende a solução mais natural possível. “O parto natural do filho, mesmo estando morto, pode fazer com que você vá processando”, aconselha ela.
Padilla é especialista em óbitos perinatais e em como melhor atravessar esse luto. Ela confirma a recomendação. “É dolorido fazer um parto vaginal de um bebê sem vida, mas é o melhor para a recuperação física da mãe e, pensando em uma gravidez seguinte, a cesariana não é o ideal”, explica ela, sempre alertando que tudo deve ser feito de acordo com as circunstâncias específicas de cada caso.
Ela também ressalta os benefícios psicológicos. “O processo [de parto normal] deixa você ciente do que está acontecendo. É difícil, mas posiciona você frente à realidade. A cesariana é uma forma rápida de colocar um fim ao assunto, mas não ajuda no luto.”
Mas ninguém disse isso a García e ela queria terminar com tudo de imediato, sedada. “Quero que tirem esse bebê morto de dentro de mim”, disse ela.
E também não se despediu dele, pois estava em choque. “Não recebi meu filho. Teria sido melhor ter me despedido dele”, lamenta ela. Hoje, García questiona por que a clínica não insistiu que ela visse o bebê.
Dias depois, quando se deu conta de todo o ocorrido, García teve ataques de pânico. “Pensei que fosse ficar louca de dor”, relembra ela. Depois de duas semanas, ela decidiu procurar ajuda e começou a fazer terapia.
Protocolo necessário
A ginecologista chilena Andrea von Hovelin fez parte da equipe de assessoramento da Lei Dominga, promulgada no Chile em 2021 para implantar um protocolo universal em hospitais e clínicas sobre o óbito perinatal.
“O protocolo deve incluir o respeito ao tempo e ao silêncio. É preciso explicar tudo, tantas vezes quantas forem necessárias”, defende von Hovelin, referindo-se especificamente ao momento em que a mãe recebe a notícia.
Celia Padilla recomenda ainda que a mãe seja notificada “em um ambiente tranquilo e com o mínimo de pessoas presentes”.
As duas profissionais destacam como pode ser positivo ver o bebê falecido e despedir-se dele, desde que seja uma escolha voluntária. “Isso ajuda [a mãe] a posicionar-se na perda e ter consciência da realidade”, segundo Padilla.
Para isso, o protocolo seguido por Padilla inclui fazer exatamente o que se faz com um recém-nascido vivo: dar banho, acomodá-lo e vesti-lo.
“Quando [o bebê] fica muito tempo no útero, o aspecto pode ser impressionante e a família é informada”, segundo ela. Em seguida, dá-se o tempo que for necessário para tirar fotos e despedir-se.
“Também fazemos uma caixinha com as impressões dos pés, a pinça do cordão umbilical e alguma fralda. Assim a família leva algo para casa. Guardar recordações pode ser uma ajuda psicológica no luto”, explica Padilla.
Jessica Rodríguez Czaplicki, presidente da Associação Espanhola de Psicologia Perinatal, salienta que, embora ações como ver o bebê, despedir-se, guardar lembranças ou tirar fotos “facilitem a elaboração do luto, elas devem ser explicadas adequadamente, informadas com muita delicadeza e sem forçar”.
Padilla e von Hovelin concordam que as mães que sofreram uma perda não deveriam compartilhar o espaço com outras gestantes, com mães que estejam com seus bebês ou “perto de uma sala de parto, onde elas escutem bebês chorando”.
E, claro, idealmente, deve haver psicólogos especialistas em luto perinatal durante todo esse tempo para acompanhá-las.
Tabu do luto
“Quando voltei ao trabalho, ninguém me falava nada. Todos fugiam de mim como se eu fosse a própria morte. As pessoas esperam que você coloque tudo debaixo do tapete”, recorda García.
Ela conta com indignação a infinidade de frases supostamente de consolo que escutou, como “Deus sabe o que faz”, “Deus precisava de um anjo” ou “o corpo humano sabe o que descartar”. “Talvez alguém encontre algum consolo nisso. Eu, não”, afirma ela.
O luto perinatal “é algo proibido, desconhecido e um tabu. A sociedade silencia sobre ele e não permite a livre expressão das emoções dos enlutados”, segundo Czaplicki.
Von Hovelin destaca que, como “o filho não existiu na mente dos demais, esse luto é considerado menos importante”. E, além disso, “ele é escondido com a esperança do futuro – a ideia de que talvez venham novos filhos ou que se deve pensar nos que existem para que sejam cuidados. Isso gera culpa nos pais e, com mais frequência, na mãe”.
Embora, no princípio, García não fosse capaz de fazer nada que exigisse um mínimo de concentração, pouco a pouco ela começou a escrever suas pequenas conquistas diárias. “Hoje, pintei uma mandala” ou “hoje, li uma página de um livro sobre luto”.
Cinco meses depois da perda do seu filho, ela deu início a algo que foi a sua forma de romper o tabu do luto perinatal: abriu uma conta no Instagram (@lamamadematiass).
“Criei sem ter expectativas, a não ser a de me curar”, relata ela. Mas a experiência fez com que ela visse que não estava sozinha.
“Perder um filho com 38 semanas faz você se sentir alguém esquisito, você chega a sentir culpa. Graças à conta, eu me conectei com outras mães que, além da perda, tiveram trombofilia hereditária”, relata ela. Foi com essa enfermidade que, depois de dois anos de exames, García foi diagnosticada como tendo sido a causa da morte de Matias.
E assim ela conseguiu criar uma comunidade. “Nós nos curamos juntas. Não sou psicóloga, mas a minha experiência é uma lanterninha. E fez com que fosse possível dar sentido a uma perda tão dolorosa.”
Com essa luz, García reivindica o luto. “Temos medo do que irão dizer, nos chamam de exageradas, que é errado estar triste. Muitas chegaram a ser ridicularizadas. Mas ninguém deve minimizar a dor. Só você sabe a história por trás dos seus filhos.”
Em busca do arco-íris
Após o diagnóstico de trombofilia, Ileana García conseguiu uma solução (anticoagulantes) e uma nova gravidez. E, com ela, uma nova emoção: o medo.
“É muito forte. É uma gravidez de medo e receio de que aconteça de novo”, relembra ela.
As especialistas consultadas defendem que não existe um período adequado para voltar a buscar uma gravidez depois de uma perda, mas é importante respeitar um tempo mínimo, não apenas para a recuperação física, mas também para proceder corretamente ao luto.
“É normal que haja dor, mas, se for incapacitante, é melhor não buscar uma gravidez”, aconselha Celia Padilla.
O mesmo indica a psicóloga Jessica Rodríguez Czaplicki: “pode-se buscar a gravidez como uma forma de ocultar a dor pelo bebê falecido. E isso realmente seria um grande erro.”
Já Andrea von Hovelin salienta que, se a gravidez ocorrer, “seria adequado um bom acompanhamento [da mãe] e compreender que uma nova gestação terá uma quota de ansiedade maior”.
Ileana García teve medo, mas o suportou e, como recomenda às outras mães, ela também aprendeu a viver a nova gravidez com alegria. “É preciso ter paciência e autocompaixão. Aprender a confiar.”
Por fim, ela teve uma gravidez arco-íris, ou seja, ela chegou a bom termo, dois anos e nove meses após a perda de Matias, depois de um luto profundo e horas de terapia.
García sabe que as coisas podem não sair bem, que existem mães que, por mais que tentem, não encontram o arco-íris depois da tempestade. Ela coloca Gabriel no berço, depois de ele dormir nos seus braços, olha para o bebê e diz: “temos o direito de acreditar em milagres”.
Recomendações de psicólogos e profissionais de saúde
Os especialistas destacam que este processo é pessoal e cada mãe, casal e família é um mundo à parte. Mas, da mesma forma que em outros tipos de luto, é preciso respeitar os tempos e as emoções, bem como a forma de viver de cada pessoa. O respeito é a chave.
Para os familiares próximos: não há palavras que possam consolar. Por isso, somente acompanhem.
Evitem dizer: “siga em frente”, “seja forte”, “você vai sair desta”, “logo você terá outro”, “é melhor assim”, “melhor agora que mais tarde”, “você é jovem, isso não é nada” ou “pelo menos você já tem outro filho”. Essas expressões não consolam nem diminuem a dor.
O que dizer: “não consigo imaginar a dor, mas estou aqui”, “imagino que deve ser muito difícil”. Um simples “sinto muito” pode servir, ou perguntar “do que você precisa?”. Pode-se acompanhar de um abraço. Às vezes, é apenas questão de ficar ao lado, em silêncio, deixando claro que você compreende essa dor, que está presente e oferece apoio.
Os progenitores devem ter claro que podem e têm o direito de expressar seus sentimentos e sua dor.
É normal sentir outras emoções, como raiva, tristeza, vazio e até esperança. É preciso dar espaço a todas elas.
Deem um nome ao seu bebê, pois ele existiu.
Passem pelo seu luto em todas as etapas. Rituais de despedida (funeral, caixa de recordações) podem fazer bem. Pode ser útil no caso de haver irmãos ou irmãs.
Formem um grupo: encontrem e falem com pessoas que tenham passado pela mesma situação.
Peçam ajuda psicológica a especialistas em luto perinatal.
Grupos de apoio no Brasil podem ser encontrados neste link.
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Fonte Notícia: www.bbc.com